terça-feira, 6 de abril de 2010

'As mil e uma Noites' e os presentes da vida




Imagem da rede. Autoria desconhecida.



Hoje recebi visita e com ela um presente, um não, dois, quer dizer, três, ou melhor... me perco em contas quanto a tudo que vem desta pessoa.

O primeiro presente foi a visita propriamente. É que se trata de uma das raras pessoas de que tenho profunda admiração, que fez e faz toda diferença no curso da minha vida.

O segundo foi o cumprimento de uma promessa. A entrega de um tesouro, escolhido a dedo, embalado na lembrança remetida a mim quando por ele foi relido em suas férias. Um tesouro rico em preciosidades. Ganhei de presente a obra 'As mil e uma Noites'!!!

Só mesmo quem penetrar as entranhas e teias de m'alma para acertar tão pontualmente o alvo, fazendo meus olhos brilhar e, afoita, desmanchar o embrulho feito criança.

Depois que a visita se foi, fiquei pensando sobre os presentes que a vida vai nos oferecendo ao longo de seu transcurso. São tantos! A pessoa da visita, por exemplo, é um dos mais belos presentes que a vida a mim ofereceu.

Enquanto terceiro presente, com ele aprendi um tanto mais sobre o céu e o inferno, sobre o doce e o amargo, sobre o agridoce do fel. Aprendi do sano e do insano, do seguro e inseguro, da certeza e incerteza, do efêmero, do eterno. Apreendi o sublime e a sublimação. Aprendi da singularidade dos seres e das plurais pessoas protocolares. Aprofundei sobre os que pensam, dos que apenas tentam, daqueles que não conseguem ou não querem pensar. Concluí das ilimitadas capacidades e possibilidades, e das limitações.
Aprendi que múltiplos podem ser os sonhos e projetos
e que num gesto apenas
tudo pode mudar de direção.
E muda.
E que mudanças podem inicialmente parecer sinônimo de frustração, mas que com o tempo descobrimos tinham outra especial função. Descobri com ele que pensar é fácil, ou melhor involuntário, quando se é atiçado por falas de um interlocutor inteligente, sensível, provocativo. E que essa tal inteligência só encontra eco noutra mente de percepção similar. E que as falas entre dois similares são intermináveis, secam a garganta, fazem esvair o tempo das horas como se frações de segundos fossem. E que histórias são construídas de falas, ora fundadas em expectativas, ora em pura despretensão.
...e que parecer/significar Sherazade pode ser, para o outro, nossa única missão.
Mil e uma noites é pouco para tantas ideias. Mil e uma vidas talvez fosse o bastante.
Fim (atemporal).

O presente fez ainda lembrar uma leitura de mais de década. Fala por si só.

As Mil e Uma Noites  (Rubem Alves)



As mil e uma noites é uma estória da luta entre o vento impetuoso e o sopro suave. Ela revela o segredo do amor que não se apaga nunca.
Um sultão, descobrindo-se traído pela esposa a quem amava perdidamente, toma uma decisão cruel.
Não podia viver sem o amor de uma mulher. Mas também não podia suportar a possibilidade da traição.
Resolve, então, que iria se casar com as moças mais belas dos seus domínios, mas depois da primeira noite de amor, mandaria decapitá-las. Assim o amor se renovaria a cada dia em todo o seu vigor de fogo impetuoso, sem nenhum sopro de infidelidade que pudesse apagá-lo.
Espalham-se logo, pelo reino, as notícias das coisas terríveis que aconteciam no palácio real:
-As jovens desapareciam, logo depois da noite nupcial.
Sheherazade, filha do vizir, procura então o seu pai e lhe anuncia sua espantosa decisão:
- Desejava tomar-se esposa do sultão.
O pai, desesperado, lhe revela o triste destino que a aguardava, pois ele mesmo era quem cuidava das execuções. Mas a jovem se mantém irredutível. A forma como o texto descreve a jovem Sheherazade é reveladora. Quase nada diz sobre sua beleza. Faz silêncio total sobre o seu virtuosismo erótico. Mas conta que ela lera livros de toda espécie, que havia memorizado grande quantidade de poemas e narrativas, que decorara os provérbios populares e as sentenças dos filósofos. E Sheherazade se casa com o sultão.
Realizados os atos de amor físico que acontecem nas noites de núpcias, quando o fogo do amor carnal já se esgotara no corpo do esposo, quando só restava esperar o raiar do dia para que a jovem fosse sacrificada, ela começa a falar... Conta estórias... 
Suas palavras penetram os ouvidos vaginais do sultão. Suavemente, como música. O ouvido é feminino, vazio que espera e acolhe, que se permite ser penetrado. A fala é masculina, algo que cresce e penetra nos vazios da alma. Segundo antiqüíssima tradição, foi assim que o deus humano foi concebido:
- Pelo sopro poético do Verbo divino, penetrando os ouvidos encantados e acolhedores de uma Virgem.
O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas Sheherazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo se tenha esvaziado do seu fogo.
O seu triste destino é ser decapitada pela madrugada:
- Não é eterno, posto que é chama...
E então, quando as chamas dos corpos já se haviam apagado, Sheherazade sopra suavemente. 
Fala... Erotiza os vazios adormecidos do sultão. Acorda o mundo mágico da fantasia. 
Cada estória contém uma outra, dentro de si, infinitamente. Não há um orgasmo que ponha fim ao desejo. E ela lhe parece bela, como nenhuma outra.  Porque uma pessoa é bela, não pela beleza dela, mas pela beleza nossa que se reflete nela...
Conta a estória que o sultão, encantado pelas estórias de Sheherazade, foi adiando a execução, por mil e uma noites, eternamente e um dia mais. Não se trata de uma estória de amor, entre outras. É, ao contrário, a estória do nascimento e da vida do amor. O amor vive neste sutil fio de conversação, balançando-se entre a boca e o ouvido.
Sônia Braga, ao final do documentário de celebração dos 60 anos do Tom Jobim, disse que o Tom era o homem que toda mulher gostaria de ter.  E explicou: -''Porque ele é masculino e feminino ao mesmo tempo... '' o segredo do amor é a androgenia: - Somos todos, homens e mulheres, masculinos e femininos ao mesmo tempo. É preciso saber ouvir. Acolher. Deixar que o outro entre dentro da gente. Ouvir em silêncio. Sem expulsa-lo por meio de argumentos e contra-razões. Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida. Alfanje que decapita. Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virginais:
-Nunca foram penetrados. E é preciso saber falar. Há certas falas que são um estupro. Somente sabem falar os que sabem fazer silêncio e ouvir. E, sobretudo, os que se dedicam à difícil arte de adivinhar:
- Adivinhar os mundos adormecidos que habitam os vazios do outro.
As mil e uma noites são a estória de cada um. Em cada um mora um sultão. Em cada um mora uma Sheherazade. Aqueles que se dedicam à sutil e deliciosa arte de fazer amor com a boca e o ouvido (estes órgãos sexuais que nunca vi mencionados nos tratados de educação sexual...) podem ter a esperança de que as madrugadas não terminarão com o vento que apaga a vela, mas com o sopro que a faz reacender-se.







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segunda-feira, 5 de abril de 2010

E ses

E se fosse o tempo menos corrente
E se fosse a gente bem mais displicente
E se fosse o modo sentido coerente
E se fosse a forma menos reticente
E se fosse o verbo maldito e decente
E se fosse o olhar entorpecente
E se fosse percebida a alma ardente
E se fosse o mínimo visto grandemente
E se convertido o subliminar em desejo pronunciado claramente
E se fosse ludibriado o inconsciente
Permitido desvelar o segredo premente
Que invoca extirpar os ‘E ses’ reincidentes
Restaria tão-somente VIDA, pois vi_vida,
Simplesmente.

[Maria Janice Vianna, no outubro de 2005]

quinta-feira, 1 de abril de 2010

É ouro puro: Não precisa casar... (Flávio Gikovate)




Water Serpents ll c1907, detail-2  Gustav Klimt

Gosto deste artigo. Destaco alguns trechos apenas pra provocar. A íntegra está no link, no final.
Faz pensar a diferença entre individualidade e egoísmo; o significado de amor romântico no imaginário social; as razões para a superação do modelo de união fruto do amor romântico; a felicidade a dois sob novas formas; a felicidade sem ser a dois etc. Há novas formas. Pouco importa a escolha, importa é se sentir confortável nela.

Não precisa casar. Sozinho é melhor
Entrevista com Flávio Gikovate - revista Veja

"Com 41 anos de clínica, o médico psiquiatra Flávio Gikovate, assistiu ao impacto da chegada da pílula anticoncepcional na década de 60 e a constituição das famílias contemporâneas, que agregam pessoas vindas de casamentos do passado. Suas reflexões sobre o amor ao longo desse tempo foram condensadas no seu 26º livro, Uma História de Amor... com Final Feliz. Na obra, a oitava sobre o tema, Gikovate ataca o amor romântico e defende o individualismo, entendido não como descaso pelos outros e sim como uma maneira de aumentar o conhecimento de si próprio."
"Os relacionamentos que não respeitam a individualidade estão condenados a desaparecer. Isso de certa forma já ocorre naturalmente. No Brasil, o número de divórcios já é maior que o de casamentos no ano. Atualmente, muitos homens e mulheres já consideram que ficarão sozinhos para sempre ou já aceitam a idéia de aguardar até o momento em que encontrarão alguém parecido tanto no caráter quanto nos interesses pessoais. Se isso ocorrer, terão prazer em estar juntos em um número grande de situações. Nesse novo cenário, em que há afinidade e respeito pelas diferenças, a individualidade é preservada. Eu estou no meu segundo casamento. Minha mulher gosta de ópera. Quando ela quer ir, vai sozinha. E não há qualquer problema nisso."
"Não há nada de errado em ser individualista. Muitos dos autores contemporâneos têm uma postura crítica em relação a isso. Confundem individualismo com egoísmo ou descaso pelos outros. São conceitos diferentes.(...) O individualismo corresponde a um crescimento emocional. Quando a pessoa se reconhece como uma unidade, e não como uma metade desamparada, consegue estabelecer relações afetivas de boa qualidade. Por tabela, também poderá construir uma sociedade mais justa. Conhecem melhor a si próprio e, por isso, sabem das necessidades e desejos dos outros. O individualismo acabará por gerar frutos muito interessantes e positivos no futuro. Criará condições para um avanço moral significativo."
"Os solteiros que estão mal são os que ainda sonham com o amor romântico. Pensam que precisam de outra pessoa para se completar. Como Vinicius de Moraes, acham que que 'é impossível ser feliz sozinho'. Isso caducou. Daí, vivem tristes e deprimidos."
"As razões que levavam as mulheres a ter necessidade de casar não se sustentam mais. Nas universidades, o número de moças é superior ao de rapazes. Em poucas décadas elas ganharão mais que eles." 
 
http://veja.abril.com.br/entrevistas/flavio_gikovate.shtml