quinta-feira, 27 de maio de 2010

Tempo através dos sentidos

,E sigo(ia) sem tempo.
Tempo. Refiro-me ao tempo de existir/coexistir em todas as esferas. Embora isso, claro que coexisto, co-habito, correlaciono, relaciono, transito, corro, paro, acelero, estanco, penso, medito, navego, voo. Medito? Ok, não foi boa a expressão. Melhor: sopeso, pondero, crio, recrio, construo, desconstruo, refaço, reinvento.

A questão é: um dos tempos que me tem faltado é para isto aqui: escrever. Um espaço dedicado a canalizar as tempestades de pensamentos e ideias, fruto de fatos e circunstâncias que provocam a imaginação, e imploram uma via de fluição.

Embora a falta dele - o tempo -, não me é subtraída a capacidade de observar as pequenas grandes coisas ao meu redor, que dirá os significativos acontecimentos que, aparentemente despretensiosos, em meio ao turbilhão de envolvimentos, batem à minha porta, chamando para um tempo de desaceleração.

Estou eu aqui. Fiz um tempo motivada nas prazerosas angústias do fenômeno que me fez parar.
Há fatos, há circunstâncias. Mas nada comparado às pessoas para fazer reinventar o tempo.

A mim, para reinventar, só aquele que pensa, que sente e que diz, que encanta olhos e ouvidos, boca e nariz.

Sensorial.

E fez-se um encanto, dos sentidos, capaz de recriar o melhor dos tempos [pra mim].
Se transitório, passageiro, quem sou eu para julgar?

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Hilda Hilst - à frente de seu tempo

Ando meio-totalmente sem tempo para produzir escritos nos últimos 30, 35, 40 (sei lá) dias, porém para ler produções, ah!, sempre construo o tempo!
É que muitas das reproduções de ideias impressas em páginas de livros ou jogadas na rede, têm o dom de me provocar absurdamente; absorta, encadeiam pensares, surgem ideias inusitadas, ou simplesmente reproduzem alguns 'aquilos' que já pensei.
A crônica a seguir, senão pela mensagem propriamente, vale para lembrar - ou apresentar - Hilda Hilst (1930 - 2004), uma mulher que foi à frente de seu tempo, que merece ser lida.  [não sei por que, mas essas 'donas fulanas' ou 'senhores beltranos' de mesmo naipe, sempre me encantaram.]


Delicatessen

- Crônica de Hilda Hilst para o Correio Popular de Campinas-SP -

Você nunca conhece realmente as pessoas. O ser humano é mesmo o mais imprevisível dos animais. Das criaturas. Vá lá. Gosto de voltar a este tema. Outro dia apareceu uma moça aqui. Esguia, graciosa, pedindo que eu autografasse meu livro de poesia, "tá quentinho, comprei agora". Conversamos uns quinze minutos, era a hora do almoço, parecia tão meiga, convidei-a para almoçar, agradeceu muito, disse-me que eu era sua "ídala", mas ia almoçar com alguém e não podia perder esse almoço. Alguém especial?, perguntei. Respondeu nítida: "pé-de-porco". Não entendi. Como? "Adoro pé-de-porco, pé-de-boi também". Ahn... interessante, respondi. E ela se foi apressada no seu Fusquinha. Não sei por que não perguntei se ela gostava também de cu de leão. Enfim, fiquei pasma. Surpresas logo de manhã.

Olga, uma querida amiga passando alguns dias aqui conosco, me diz: pois você sabe que me trouxeram uma noite um pé-perna de porco, todo recheado de inverossímeis, como uma delicadeza para o jantar? Parecia uma bota. Do demo, naturalmente. E lendo uma entrevista com W. H. Auden, um inglês muito sofisticado, o entrevistador pergunta-lhe: "O que aconteceu com seus gatos?" Resposta: "Tivemos que matá-los, pois nossa governanta faleceu". Auden também gostava de miolo, língua, dobradinha, chouriços e achava que "bife" era uma coisa para as classes mais baixas, "de um mau gosto terrível", ele enfatiza. E um outro cara que eu conheci, todo tímido, parecia sempre um urso triste, também gostava de poesia... Uma tarde veio se despedir, ia morar em Minas... Perguntei: "E todos aqueles gatos de que você gostava tanto?" Resposta: "Tive de matá-los". "Mas por quê?!" Resposta: "Porque gatos gostam da casa e a dona que comprou minha casa não queria os gatos". "Você não podia soltá-los em algum lugar, tentar dar alguns?" Olhou-me aparvalhado: "Mas onde? Pra quem?" "E como você os matou?" "A pauladas", respondeu tranqüilo, como se tivesse dado uma morte feliz a todos eles. E por aí a gente pode ir, ao infinito. Aqueles alemães não ouviam Bach, Wagner, Beethoven, não liam Goethe, Rilke, Hölderlin(?????) à noite, e de dia não trabalhavam em Auschwitz? A gente nunca sabe nada sobre o outro. E aquele lá de cima, o Incognoscível, em que centésima carreira de pó cintilante sua bela narina se encontrava quando teve a idéia de criar criaturas e juntá-las? Oscar, traga os meus sais.

(Segunda-feira, 1 de março de 1993)